Capoeira na sociedade e cultura

Por Matthias Röhrig Assunção.

A “roda pequena da capoeira”, por oposição à “roda grande da vida”, é uma metáfora bastante usada por mestres e praticantes de capoeira. Essa imagem remete à constante interação entre a prática da capoeira e a sociedade mais abrangente. No caso do recorte temporário do nosso projeto de pesquisa – 1948-1984 – debruçar sobre essas relações complexas e multidimensionais ajudam a entender a formação da “capoeira contemporânea” no Rio de Janeiro.

 

Saiba mais

sobre a importância da capoeira na sociedade e cultura carioca

Como ocorre com todas as manifestações da cultura popular, a capoeira no Rio de Janeiro nunca existiu em isolamento. Sempre esteve associada a outras formas, como o samba, a batucada, a pernada carioca, a umbanda e o candomblé, para apenas listar as conexões mais conhecidas. Essa inserção se desdobrou num processo de circulação cultural onde cada expressão cultural fazia empréstimos de determinados elementos de outras manifestações. Houve, assim, troca de movimentos: da capoeira, com o samba e a pernada, e de suas letras, com o samba e o jongo.

É no carnaval que essa relação encontrou visibilidade maior

quando escolas de samba, como a Mangueira, e blocos de embalo, como o Bafo da Onça e o Cacique de Ramos, acolheram a renascente prática da capoeira na década de 1960.

Na foto, Mestres Paulão e Burguês, no desfile do bloco Cacique de Ramos, anos 1970. Acervo Paulão Muzenza.

Ao mesmo tempo, a capoeira entrou no ringue.

Os primeiros confrontos com lutadores de outras artes marciais já aconteceram na Primeira República. Sempre é lembrado o famoso encontro de Ciríaco com o Conde Koma, em 1909, no Rio de Janeiro, porque nesse caso o capoeira brasileiro ganhou.

Na imagem, O jornal O Malho, de 20/08/1910, traz a foto de Ciriaco, tornado celebridade após a vitória sobre Sada Miako, com a notícia de que o “mestre de capoeiragem” descansava da luta em uma fazenda em Minas Gerais.
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Houve, no entanto, muitos outros confrontos, em Salvador, no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Belém, dos quais participaram não somente os alunos de Mestre Bimba, mas também angoleiros. E não adianta negar: muitas vezes os capoeiristas perderam, principalmente contra os praticantes de jiu-jitsu. Os angoleiros e o próprio Bimba acabaram por retirar-se do ringue, em Salvador, assim como, pouco depois, Artur Emídio, no Rio. Mas, esses confrontos no ringue e a relação mais abrangente entre capoeira e outras artes marciais foram importantíssimos para definir os rumos que a própria capoeira iria tomar durante as décadas de 1930, 1940 e 1950. A capoeira também contribuiu para o estilo brasileiro de jiu-jitsu, o BJJ, bem como para a emergência do vale-tudo e do MMA, como mostra com mais detalhes a pesquisa recente de Elton Silva e Eduardo Corrêa, publicada no livro Muito antes do MMA: O legado dos precursores do Vale Tudo no Brasil e no mundo.

Capoeira e MPB

A capoeira também esteve presente, desde o início, em estilos musicais emergentes como a Bossa Nova e a MPB. O pioneiro, até onde saibamos, foi J. B. de Carvalho, conhecido no Rio de Janeiro por gravar músicas de macumba. Em 1955, em disco ainda no formato 78 rotações, cantava: “Capoeira toma sentido/e eu vou lhe derrubar”, numa composição com Walter Tourinho e Guará, regravada em 1961. Em seguida apareceu Capoeira na Pituba (Clélio Ribeiro – Lauro Paiva), gravada pelo Maestro Paulo Alencar e sua orquestra (1961).

Mas, a primeira gravação tematizando capoeira que realmente fez sucesso, ao ponto de ser traduzida para o inglês, foi Água de Beber, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, interpretada por João Gilberto e lançada em 1963. No entanto, a capoeira aqui ainda é mais aludida do que explícita. Nem todo mundo sabia então que capoeiras chamavam-se entre eles de “camarada” ou “camará” e que “água de beber” é refrão de chula de capoeira.

No ano de 1964 foram lançadas várias músicas tematizando a capoeira. Jorge Ben, no álbum Sacundin Ben Samba, lançou Capoeira. O título é seguido de refrão que se refere diretamente à roda: “Vamos embora camarada, vamos sair dessa jogada”, usando a linguagem da capoeira já na própria letra.

Nara Leão foi mais longe ao gravar, em seu segundo disco, a música Berimbau (1964), que também cantou na sua estreia de cantora, numa boate de Copacabana. A música de Baden Powell e Vinicius de Moraes usava letras de capoeira de domínio popular. Esse disco, considerado por muitos como o início da MPB, fez bastante sucesso (CABRAL, Nara Leão, p. 273). Nara incluiu a mesma música no seu LP Opinião, lançado nove meses depois, ainda em 1964. Esse LP traz também a música Na roda da capoeira, que permanecia ainda mais fiel aos instrumentos e toques de berimbau da capoeira.

A partir daí, muitos astros da MBP compuseram ou gravaram músicas tematizando a capoeira: Edu Lobo, Geraldo Vandré, Caetano Veloso, Jackson do Pandeiro, Elizeth Cardoso, Jair Rodrigues, Elis Regina e Paulo César Pinheiro, para citar apenas alguns dos mais conhecidos.

Em outras palavras, a música de capoeira esteve presente desde o início na MPB. Sem dúvida, a capoeira estava ficando na moda e essas gravações a ajudaram a ser aceita pela sociedade.

O espetáculo da capoeira

A aceitação da capoeira pela sociedade também é visível no crescente número de exibições de capoeira no palco, em apresentações e shows promovidos por associações, clubes e empresários nas décadas de 1960 e 1970. Alguns desses espetáculos, na Bahia e outras cidades, destinavam-se a um público de turistas, enquanto, no Rio de Janeiro, muitos eram destinados ao público carioca, que ainda desconhecia a capoeira moderna. Como mostrou Ana Höfling, a capoeira para o palco teve um impacto profundo sobre a própria arte, na Bahia.

Todos esses eventos e lançamentos foram noticiados primeiro pela imprensa, logo pelo rádio e a televisão. Como é sabido entre estudiosos, a arte migrou das páginas policiais para as páginas de cultura e de desportos, deixando um rastro que permite reconstituir essa história. A capoeira esteve presente no rádio, desde a primeira gravação de Almirante que foi pro ar, em 1938, na Rádio Nacional. Em 1963, o jornalista André Lacé lançou Rinha de Capoeira, o primeiro programa regular sobre capoeira.

A televisão também começou a fazer reportagens sobre capoeira. Infelizmente a desorganização dos materiais audiovisuais em arquivos públicos ainda não permite uma consulta sistemática desses registros, grande parte dos quais provavelmente está perdida para sempre. Não há dúvida, no entanto, de que as relações entre os capoeiristas e a mídia foram também fundamentais para os destinos da arte e, por isso, precisam ser investigadas mais sistematicamente.

Na foto clássica do acervo de Mestre Cabide, o Grupo de Capoeira Bonfim, trajando sua tradicional Camisa listrada e calça branca, se reúne para uma apresentação na TV Globo, nos anos 1960.

Grupo Bonfim Tv Globo

A Capoeira e o Estado

Outra dimensão importante da relação entre capoeira e a sociedade mais abrangente se deu nas forças armadas e na polícia. É comum a referência à capoeira como resistência do escravizado e, de fato, serviu a esse propósito no tempo do cativeiro. Entretanto, pelo menos desde a Guerra do Paraguai, temos a figura do capoeira-soldado. No Rio de Janeiro, ainda no Império, muitos capoeiras entraram para a Guarda Nacional, a milícia cidadã que defendia a ordem escravocrata. Também acabaram por entrar para a polícia ou serviram de capangas e cabos eleitorais para os partidos conservador e liberal, ainda durante o Império.

Desde pelo menos o início da República, um setor do Exército se interessou pela capoeira e tentou “redimi-la” para que servisse de “ginástica nacional”. Do anônimo O.D.C. a Inezil Marinho houve apelos para incorporar a capoeira à educação física de soldados e marinheiros. Os mestres Bimba e Artur Emídio, para citar apenas os dois exemplos mais famosos, deram aulas para recrutas do Exército e da Marinha. Capoeristas também integravam a polícia especial criada pelo regime Vargas, em 1933. Nas décadas de 1960 e 70 a capoeira também esteve presente nas polícias militares do Rio de Janeiro e da Bahia (e suponho também em outros estados). A história dessa relação complexa ainda está para ser escrita.

Em 1968 e de novo em 1969, a Força Aérea Brasileira organizou dois importantes simpósios de capoeira trazendo ao Rio de Janeiro os mestres mais renomados da Bahia para discutir a institucionalização da arte. Quando o Conselho Nacional de Desportos reconheceu a capoeira como modalidade desportiva, em 1972, outra vez muitos militares se engajaram e contribuíram para a criação da Confederação Brasileira de Capoeira (CBC), em 1992.

A interseção com o Estado não se limita às forças armadas e à polícia. A capoeira fez parte da organização nacional dos desportos desde os tempos de Vargas. O Departamento Nacional de Luta Brasileira (Capoeiragem) fazia parte da Federação Brasileira de Pugilismo, criada em 1935 e subordinada ao Conselho Nacional de Desportos (Decreto Lei Nº 3199 de 14.4.1941).

Patrimônio histórico

A partir dos anos 2000, o Serviço de Patrimônio (hoje IPHAN) também se interessou pela capoeira, sobretudo a partir da formulação, pela UNESCO, de políticas de salvaguarda do patrimônio imaterial. Esse processo tem resultado no inventário da roda de capoeira e do ofício de mestre, em 2008 no Brasil, e pela mesma UNESCO, em 2014. É interessante nesse sentido ver como vários grupos dentro e fora do Estado se esforçaram para institucionalizar a capoeira, seguindo modelos diferentes: ora a consagrando como desporto, ora como cultura afro-brasileira. Como mostram os recentes conflitos em torno da regulamentação da profissão pela Câmara dos Deputados, esse processo está longe de ser terminado

Da mesma maneira, a capoeira participou de movimentos sociais da Nova República, por exemplo, com alguns grupos se associando ao movimento negro, que reemerge na década de 1980. Em seguida, vemos as importantes articulações de praticantes mulheres no interior dos grupos, ou em redes paralelas, em prol da igualdade de direitos de gênero na capoeira.

A capoeira tem desenvolvido um campo enorme de interação com a educação física e as ciências da saúde. Métodos de ensino baseados em capoeira e a apropriação da capoeira como terapia são apenas dois exemplos da maneira como a arte se fez presente nessas disciplinas e nesses campos. Esperamos, no futuro, contar com contribuições em nosso blog para cobrir todas essas temáticas (envie sugestões para o email capoeirahistory arroba gmail.com).

A relação entre capoeira e a sociedade é complexa e se dá em muitas dimensões e campos. São influências recíprocas, intercâmbios e circulação de práticas, saberes e procedimentos. Cabe aos historiadores, cientistas sociais e aos próprios mestres e praticantes refletirem sobre essa dialética entre a capoeira e a sociedade mais abrangente. De uma certa maneira, escrever a história da capoeira é escrever a história do Brasil.

Para saber mais:

Cabral, Sérgio. Nara Leão: uma biografia. Rio de Janeiro, Companhia Editora Nacional/Lazuli. Kindle Edition, 2008.

Höfling, Ana Paula. Staging Brazil: choreographies of capoeira. Middletown, CT: Wesleyan University Press, 2019.

Silva, Elton & Corrêa, Eduardo. Muito antes do MMA: O legado dos precursores do Vale Tudo no Brasil e no mundo (1845-1934), 2 vol. publicados, edição Kindle, aproximadamente 2019-2020.

“Roda de Capoeira”, Nara Leão, LP Opinião, 1964. https://www.youtube.com/watch?v=lfLcrQv_CVU